quarta-feira, 25 de março de 2009

PERDA DA AOREOLA

«Eia! quê! tu aqui, meu caro? Tu, num lugar reles! tu, o bebedor de quintas-essências! tu, o saboreador da ambrósia! Na verdade, há nisto qualquer coisa que me surpreende.— Meu caro, conheces o meu pavor dos cavalos e das viaturas. Há pouco, ao atravessar o boulevard a toda a pressa, e ao saltar na lama através desse caos movimentado onde a morte avança a galope de todos os lados ao mesmo tempo, a minha auréola, num movimento brusco, caiu-me da cabeça no lodo do macadame. Não tive coragem para a apanhar. Julguei menos desagradável perder as minhas insígnias do que partir os ossos. E depois, disse comigo mesmo, há males que vêm por bem. Agora posso passear incógnito, fazer más acções, e entregar-me à crápula, como os simples mortais. E eis-me aqui, semelhante a ti, como vês!— Devias ao menos mandar anunciar essa auréola, ou fazê-la reclamar pelo comissário.— Por coisa alguma! Acho-me bem aqui. Só tu me reconheceste. Para mais, a dignidade aborrece-me. E também penso com satisfação que algum poetastro a vai apanhar e cobrir-se com ela impudentemente. Fazer alguém feliz, que alegria! e sobretudo um feliz que me fará rir! Ora pensa em X ou em Z! como será divertido!»Charles Baudelaire, in O Spleen de Paris (Pequenos Poemas em Prosa), trad. António Pinheiro Guimarães, pp. 131-132, Relógio D’Água, 1991.



ACHEI ESSE POEMA MARAVILHOSO!
Talvez tenha extrapolado um pouco, mas... vejo nas palavras do proeta não a perda da identidade de poeta como dito em sala, mas a renúncia do autor em "seguir as regras que caracterizam a elite burgusa", pois um poeta não deixa de ser poeta ainda que deixe de escrever poemas.
Ainda que tenha passado a frequentar lugares " reles" ele está achando maravilhoso essa liberdade de fazer o que quiser sem que o identifiquem, como comentado pelo professor, é comum pessoas de determinadas classes sociais que se tornam públicas sentir prazer em poder fazer "coisas" que nós "simples mortais" fazemos.

contextualizando, em atividade recente do ACC de educação popular pudemos vivenciar um pouco desse prazer que o autor fala, vimos alunos sentindo-se em um parquer de diversões ao ir à roça, virar massa de cimento, tomar banho de rio... coisas que para os moradores dos assentamentos é absolutamente corriqueiras...

fica difícil para nós saber exatamente qual a sensação de passar a ser anônimo, já que já o somos, mas deve ter sido muito bom para o autor a ponto de ele escrever um poema de forma simples mas de uma enorme profundidade.

acredito que possamos encaixar aí também o motivo de Benjamin gostar dos poemas de Baudelaire.